
‘Uma garota de muita sorte’ (2022), novo filme ‘original Netflix’, mal chegou no streaming e já tem dado que falar. Com gatilhos despejados irresponsavelmente, uma história cheia de excessos e um final morno, o longa se perde em muito querer dizer.
A protagonista Ani FaNelli (Mila Kunis) é uma mulher independente, bonita, trabalha em uma importante revista de Nova York, é noiva de Luke Harisson (Finn Wittrock) um jovem rico, de boa família, influente e apaixonado, todo esse combo faz parecer que ela tem a vida dos sonhos.
No decorrer da trama, a personagem sugere que sua tranquila e bem-sucedida vida esconde segredos obscuros.
A construção da personagem busca mostrar duas personalidades que duelam o que é apresentado, em sua maior parte, a partir de pequenos monólogos. Enquanto uma é agradável “como uma boneca de corda” que sabe o que dizer para agradar a todos, a outra Ani é traumatizada, irritada – até grosseira, ressentida e insatisfeita com a vida, questiona o casamento, até seu próprio trabalho como jornalista.

Seus comentários sempre irônicos/sarcásticos sobre a sociedade são interrompidos por flashbacks do seu passado. Os espelhos em vários cômodos e cenas explicitam. de forma quase didática, a necessidade que ela tem de se reconhecer, sua falta de identidade, assim como o medo de retornar para um lugar que até então o público não conhece.
Nos primeiros 15 minutos é fácil achar que estamos diante do próximo Garota Exemplar (2014), filme de David Fincher ou mesmo de um ‘Bela Vingança’ (2020), de Emerald Fennell, que chegou a ganhar o roteiro original em 2021, mas não é esse cinema que vemos no decorrer do longa.
Mila Kunis se esforça para mostrar sua desenvoltura nas telas, segue o roteiro, mostra sua inquietude, insegurança e a conturbada relação que tem como uma pessoa que escolheu ser ao sufocar o passado, mas isso não é suficiente. Falta delicadeza ao mostrar isso sem parecer arrogante ou irritada com a vida. O exagero e a quantidade de vezes que ela mostra sem deixar subentendido acaba por roubar a reflexão do espectador e se torna tão explicativo que cansa.

Alerta de spoiler a partir daqui!!
Ani passou por uma adolescência turbulenta que deixou traumas, entretanto, a tentativa de mostrar a forma como boa parte da sociedade trata as mulheres vítimas de abusos sexuais, acabou se tornando pesada e merecendo um ‘alerta de gatilho’ para algumas cenas.

Quando jovem, ela sofreu um estupro coletivo – de três rapazes da escola – mas nunca contou aos familiares por vergonha, mas os amigos Arthur e Ben, da turma nerd e excluída, já haviam passado por humilhações causadas pela mesmo trio, decidiram que desta vez isso não sairia barato. A dupla organizou um ataque à escola deixando vários mortos e um dos algozes de Ani, paraplégico.
O longa utiliza duas tragédias, o atentado e o estupro para questionar a credibilidade das narrativas femininas e colocar em xeque o tratamento da sociedade com as mulheres e homens diante da mesma situação, dando a entender que basta ser homem branco e rico que sairá ileso de toda acusação (o que não é bem assim, sabemos que na maioria das vezes basta ser homem).
Para fechar, é válido dizer que ‘Uma garota de muita sorte’ tem boas intenções ao mostrar os danos causados pelo trauma como quando Ani passa anos tentando ser bem-sucedida, tem vergonha de escrever sobre sexo na revista porque acredita que terá mais credibilidade se escrever sobre política, ela também acha que agora talvez poderá ser ouvida, já que está com um enorme anel de noivado nas mãos e casamento marcado com um rico e influente.

Ou ainda, quando em outro momento Ani não consegue aceitar o noivo e se ressente da sua boa vida, dos privilégios masculinos. Como nem só de boas intenções vive o cinema, o longa de Mike Barker amarga pouco os 40% de aprovação no Rotten Tomatoes.
Por fim, uma das frases que guardei do filme e que deve ser lembrada pela verdade dentro daquele contexto: “Todas mulheres ficarão bem”.